sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Rua do Bonjardim

_____________________________

1.


Uma janela de guilhotina
golfava na rua, vozes
de barítono rouco e contralto
agreste, num vibrato de raivas
do libreto diário, onde muito
ou pouco, se teriam amado.


2.


Ao entrar no quiosque
nesta tarde de névoa, para
comprar um jornal qualquer, uma criança
pediu algo que não entendi. Seria
uma moeda para um chiclet? Perguntei
ao homem sentado atrás das
revistas do coração e dos diários
da bola, de quem seria a criança, como
se pudesse ser de alguém, um ser
tão súbito, nascido da genealogia
indecifrável da tarde.


3.


Vindo do Marquês, o autocarro
chiava na curva estreita, soltando
os seus vapores de gasóleo, e
num portal surgia um gato pardo
para o qual me inclinei, sabendo
que fugiria ao contacto
da minha mão, ou apenas ao
esboço de carícia, como fazem
os gatos, tão fugidios na presença
de estranhos. Mas o animal no
instante do recuo, aceitou o
deslizar dos meus dedos,
em troca de amáveis energias. E
uma longa saudade subiu-me pelo
braço, no arquear festivo
daquele pequeno tigre.



PENHORES


Aros esmaecidos, os anéis repousam
em brilhos desertos. Tantas
histórias banais com letreiro de
ouro usado. Nessa dúbia cor, uma
nobre tristeza resgata
os formatos vulgares e desenha
velhas parábolas
de purgatório e redenção.

I. L.

(dos livros Teoria da Imunidade (1996) e Um Quarto com Cidades ao Fundo (2000)

Nota: post dedicado a uma leitora do blogue, que reside em Inglaterra, mas que descobriu que um seu trisavô nasceu perto desta rua, em 1824.

terça-feira, 18 de novembro de 2008

Rui Lage - "CORVO"

____________________________________
CAÇA GROSSA

Entopem o gargalo da toca
espetando o nariz, calcando
esquivo lagarto pateando
ossinhos de rato no Éden
de outra vida
enquanto das élficas orelhas
sacodem dejectos de sol:
duas raposas recém-nascidas.

Indiferentes ao milhafre
e à doninha,
em qualquer colo felizes
de qualquer leite beberiam.

Mas na aldeia,
numa porta de estábulo
imunda e carunchosa
o sangue secou no ruivo pêlo
e na materna cabeça a pólvora
onde a bala deu entrada.


Rui Lage, Corvo, Quasi Edições, VNFamalicão, 2008

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

"O PORTO É O MAIOR"

Uma mulher já muito sexagenária, gritava, noite fechada, na rua, festejando a vitória portista sobre os "lagartos", para a Taça de Portugal.

Perguntei-lhe a razão de tal festejo ainda precoce, atendendo ao tempo que ainda falta para a final da tal Taça:
"Olhe, minha senhora, o meu marido trata-me mal; sou diabética, estou quase cega e os meus filhos por quem tanto me empenhei, desprezam-me. Ao menos o Porto, dá para festejar."

Mais uma vez constatei como o futebol pode ser um excelente "Prozac". Daí a sua grande popularidade e consumo.

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Oh!!! Obama!!!

_____________________________
_____________________________
_____________________________

Vitória CLARA dum senhor ESCURO.


Ainda 50 anos, em Nova Iorque, uma mulher negra tinha que se levantar, num autocarro, para dar lugar a um homem branco.

Independentemente do ajustamento da esperança de mudança, às cruas realidades políticas, económicas e sociais, que inexoravelmente se vai seguir, foi uma bela vitória.

Reinvente-se a América.


sábado, 1 de novembro de 2008

JUKEBOX 2 - Manuel de Freitas

__________________________
ALDINA DUARTE, 2007

O Sr. Vinho fazia apenas mais
um ano do que tu. São coisas que
acontecem, tão exactas e por vezes
belas como a tristeza de saber
que "tudo aquilo que hoje
existe/um dia há-de morrer".

Aquele corpo, de olhos fechados,
pedia com as mãos que não
o fotografassem essa noite,
sujando uma alegria que até na dor
prevalece e ficou, durante alguns
segundos, encostada aos nossos ombros.

quando ouviram Ai Meu Amor
se Bastasse as pedras de gelo
aceitaram desfazer-se no meu copo,
muitos anos depois de termos gasto a morte:
agora que nenhum esquecimento basta
e se reacende, todavia, a vela frágil do amor.


Jukebox 2, Teatro de Vila Real, Out. 2008


Mais poemas de Manuel de Freitas aqui , aqui e aqui

Para os mais interessados, Averno diz mais.