terça-feira, 30 de abril de 2013

Inês Dias

    LEI SÁLICA


As  mulheres da família sempre
tiveram  um jeito quase póstumo
de existir: guardar o lume
em silêncio, comer depois de
servir os outros, morrer primeiro.


Saíam à hora de ponta do destino
para lerem os caminhos perdidos
e coleccionavam a abdicação
em caixinhas de folha, entre bilhetes
caducados ou dentes de infâncias alheias.


Esperavam a vida toda por uma vida
próxima, de alma presa a alfinetes
no vestido preferido para o enterro,
os passos medidos nas suas varandas
a dar para o fim do mundo.


Retomo-lhes às vezes os gestos
neste meu exílio inventado,
mas acaba aqui: vou encher de corpo
a sombra, mesmo que nem tempo
me reste já para a pesar.

pág. 10



   RESTAURAÇÃO


Risquei o último fósforo
e estou agora vazia,
não esperando sequer
o deserto. Posso de novo
sublinhar os livros
sem pensar noutros olhos,
numa vontade que não coincida;
como quem se despe
de portas abertas, luzes acesas,
buracos na roupa,
indiferente ao desejo
de vizinhos e espelhos.


Sou finalmente o único fantasma
da minha vida inteira.

pág, 14

in UM RAIO ARDENTE E PAREDES FRIAS,
Ed. Averno, Lisboa 2013.

segunda-feira, 29 de abril de 2013

quarta-feira, 24 de abril de 2013

terça-feira, 23 de abril de 2013

Dia Mundial do Livro


 LIVROS USADOS

Tudo que se disse depois e
ainda se diz, pode estar num usado
exemplar de Crime e Castigo ou da Utopia.
Os livros usados - mesmo
mesmo que se chamen Utopia -
têm aquela terna docilidade
das páginas em que outras
mãos passaram, ao contrário
dos novos, que em rígidas e
intactas páginas são só apenas
papel impresso.

E para escassos amigos, quando
se fugiu duma livraria de
consumíveis tops,
talvez seja essa
a melhor oferta.

Inês Lourenço
in A Disfunção Lírica, & etc, 2007 Lisboa.

sexta-feira, 19 de abril de 2013

Manuel Gusmão


uma árvore é um anjo

um anjo lenhoso, altamente inflamável,
de alto a baixo prometido
a um incêndio que a si mesmo se combatesse

uma árvore é um anjo da terra
um anjo que está sempre a enraizar-se
e a erguer-se a poder de braços

Uma árvore conhece pouco
das nossas maneiras de lutar
e morrer; por isso:

uma árvore é e não é um anjo



in Da Linguagem das Árvores e do Vento,
pág.27 , em PEQUENO TRATADO DAS
FIGURAS, 2013.

sexta-feira, 12 de abril de 2013

Jorge Sousa Braga


 O novíssimo testamento

     para acabar de vez com os direitos humanos
     e restaurar os direitos divinos

Escrevi este testamento com sangue
de galinha
eu que não esqueço nunca a minha condição de pilha-galinhas
condenado a viver num galinheiro povoado de fantasmas de
      galinhas-da-índia patos perus gansos garnizés
e a cacarejar pela noite fora
sem que um só galo da vizinhança me responda
nem os galos dos cataventos
- quando o galo cantar renegar-me-ás três vezes quando o galo
      cantar -
Quando era criança antes de matar uma galinha
a minha mãe pedia-me para lhe prender as pernas e as asas
eu metia as mãos por debaixo da saia e prendia-lhe as asas e as
      pernas com todas as minhas forças
O sangue jorrava da sua cabeça para uma malga com vinagre
e ficava depois muito tempo ainda a espernear no alguidar
o pequeno olho muito aberto...
Os meus sonhos estão cheios de cabeças de galinha
ainda escorrendo sangue
de milhões de asas de milhões de patas de galinha de milhões
       de ovos
Quem vai bater esta gigantesca omeleta de ovos
na frigideira celeste?
A minha alma é uma pequena alma entre biliões de outras almas
Que tamanho tem a alma dum mosquito?
Proclamo a minha solidariedade com todos os biliões de frangos
       do planeta
que tentam em vão escapar à máquina de depenar eléctrica
com todos os carneiros cabras ovelhas avestruzes
- Eu sou um cordeiro inocente que se perdeu do pastor
e não sabe senão balir -
com todas as vacas
condenadas a comer rações impróprias e a um orgasmo gelado
No silêncio dos estábulos elas preparam a sua vingança
enquanto sonham com um prado verde de gramíneas
- e essa vingança será terrível -
Este é um testamento escrito com o sangue
do último dos genocídios
- e esse sangue é da cor do alcatrão -
tendo como testemunhas apenas as duas metades
do meu coração

in RESUMO a poesia em 2012, pág.102 e 103, Ed. Documenta.

quinta-feira, 11 de abril de 2013

ANA HATHERLY


A verdadeira mão que o poeta estende
não tem dedos:
é um gesto que se perde
no próprio acto de dar-se


... O poeta desaparece
na verdade da sua ausência
dissolve-se no biombo da escrita


O poema é
a única
a verdadeira mão que o poeta estende


E quando o poema é bom
não te aperta a mão:
aperta-te a garganta


- ANA HATHERLY -

terça-feira, 9 de abril de 2013

Fernando Guimarães

    Morte

Sabemos que de todas as sementes
é a mais pesada. Havemos de esperar
por ela. Acolhemo-la e nada
podia ser tão nosso. Compreendemos
que no seu interior talvez exista
a última seiva, o rumor de outra
germinação para que fique
junto dela. Descai silenciosa
e devagar. A terra é o nosso corpo.


in RESUMO a poesia em 2012,
pág. 82, Ed. Documenta.

quinta-feira, 4 de abril de 2013

António Ramos Rosa

O mais seguro abrigo
é o que oscila um pouco
como se oscilássemos
sobre a matéria viva
ou no coração do espaço

             pág.46


O poema deve
aparecer
como um objecto supérfluo
e surpreendente

              pág.47


Vivi tanto
que já não tenho outra noção
de eternidade
que não seja a duração da minha vida

              pág.48


in RESUMO a poesia em 2012, Ed. DOCUMENTA, Lisboa.

segunda-feira, 1 de abril de 2013

A obra magistral de Óscar Lopes



«Neófito, a morte não existe»
- lembrando Óscar Lopes

Óscar Lopes foi um homem bom. E foi um homem humilde como só os homens sábios sabem ser. Humilde no saber, nas certezas, sempre pronto a rever-se e a ensaiar novas soluções para o mar de interrogações por onde navegava procurando persistentemente respostas, sem que isso implicasse perda de um norte ideológico que toda a vida procurou com perseverança, estudo e abertura de espírito. A vida desafiava-o quotidianamente e todos os planos da realidade o interpelavam, por isso nunca se fechou numa única área do saber, nunca foi rato de biblioteca, embora tivesse sido um leitor compulsivo, nunca se fechou ao chamamento do mundo, quer o mundo fosse a sua escola, a sua cidade, o seu partido, o seu país, o planeta, o cosmos. Tudo o interessava e por isso era tão fascinante ouvi-lo, sempre apaixonado pelo ato de pensar, falar, quer da história duma palavra, como da de um longínquo astro, quer de uma qualquer estrutura linguística, como de um verso de Camilo Pessanha, quer da música que tanto amava, como do último problema de lógica com que se debatia. Amava a humanidade e o mundo tão agreste em que lhe foi dado viver.

A curiosidade intelectual insaciável faz dele, jovem professor de português nos liceus, já com duas licenciaturas feitas, um incansável estudioso da literatura e da língua. Começa por se dedicar à historiografia literária, publicando abundantemente já nos anos 40, mas, depois, a crítica literária da produção contemporânea atrai-o e torna-se um brilhante ensaísta, que publica nas páginas do Comércio do Porto, durante as décadas de 50 e 60, uma crítica extremamente original, atenta à materialidade formal do texto literário, na qual vai construindo o seu conceito singular de “realismo problemático ou dialético”, um realismo longínquo da tradição oitocentista e heterodoxo relativamente a neorrealismo imperante, que se manifesta sempre que a literatura resiste ao senso comum e produz um alargamento de mundos. Através desse exercício crítico vai afinando o seu conceito de que a leitura tem sempre um carácter provisório. Ler é fazer tentativas, é ensaiar sínteses, pontos de equilíbrio num palco de conflitos que um texto sempre constitui. Por isso, para Óscar Lopes, a leitura de um texto literário constitui um desafio para quem lê: “compreender, realmente, uma obra é compreender-se melhor.”

Esta tentativa de ler com propriedade e instrumentos tão rigorosos quanto possível leva-o a mergulhar mais no estudo da língua. Nos anos 60, num clima intelectualmente adverso, impedido até, por algum tempo, de ensinar, controlado nos contactos, movimentos, correspondência, em clima de grande solidão intelectual, Óscar Lopes torna-se um investigador de ponta no campo da linguística. Escreve, como bolseiro da Fundação Gulbenkian, a inovadora Gramática Simbólica do Português, a partir das experiências que faz com os seus estudantes adolescentes, cruzando formalmente o ensino do português com o da matemática. Quando, com o 25 de Abril, vê finalmente abrirem-se-lhe as portas da Universidade, será no campo da linguística que exercerá o seu magistério. Eu, então jovem assistente universitária, recordo o pasmo com que assisti a algumas das aulas de Linguística Matemática e Computacional que dava nos intervalos que a gestão da Faculdade de Letras do Porto, em quotidiano processo de mudança e democratização lhe permitiam, gestão que ele abraçou com o entusiasmo que punha em tudo.

Claro que todos o lembramos por essa obra fundadora de uma historiografia literária nova, arredada da historiografia positivista imperante, que escreveu a duas mãos com o amigo de sempre, António José Saraiva, a História da Literatura Portuguesa, a qual, com cerca de 20 edições, formou gerações de estudantes em Portugal e no Brasil. Mas ela é apenas a parte com mais visibilidade da obra muito mais vasta e complexa, até muito tarde desconhecida, deste homem do norte.

A bondade já evocada de Óscar Lopes, fruto evidentemente da sua elevada dimensão ética, também decorre em grande medida do ensaísmo que sempre praticou em todos os domínios – ensaísmo no seu sentido etimológico de ensaiar, tentar, encontrar soluções e tentar de novo novas hipóteses. A sua bondade manifestava-se neste espírito de abertura ao conhecimento e ao diálogo com o outro. Das coisas de que mais gostava era de trocar, debater, defender ideias e por isso ouvia o outro com uma disponibilidade sem limites: do aluno principiante ao intelectual ou ao criador de maior renome. Ouvia-os com um interesse genuinamente idêntico conjugando ao máximo os seus próprios preconceitos ou pressupostos ideológicos. O membro do Comité Central do PCP que também foi durante algum tempo não adotava qualquer ortodoxia nas suas opções ideológicas ou epistemológicas.

Um dia, em 1992, Óscar Lopes escrevia a um António José Saraiva doente e desalentado: “Só o enfraquecimento da convicção é que nos pode dar a obsessão da morte. Lembra-te do verso de Pessoa, no poema Iniciação: «Neófito, a morte não existe». Cada um de nós é muito mais (e muitos mais) do que aquele que se vê. (…) «Neófito, a morte não existe», a não ser na falta de convicção de verdade ou de valor».

Era assim Óscar Lopes, não acreditando na morte e perseguindo sentidos de verdade para a vida no pensamento.

Isabel Pires de Lima
Publicado no JN a 28-03-2013