segunda-feira, 31 de março de 2014

Cintilações da Sombra 2

 
 
antologia poética - Coordenação: Victor Oliveira Mateus


O poema abaixo integrou esta antologia:



ANTES

 

No princípio não era o verbo
mas o antes. Não-lugar onde
nenhum mantimento
era  necessário. Mesmo isso
a que chamam palavras, cadeias
servis de contágio e contagem,
não tinha qualquer serventia.

 

Era muito antes da cisão
da luz e da treva e
da fábula fatal de qualquer
existência. Muito antes da
invenção maligna de Cronos e
de outros princípios divinos. Muito
antes do negro e do branco,
do bem e do mal, do macho
e da fêmea.

 

Desnecessários eram,
por inúteis: searas e ceifeiros,
rebanhos e pastores, senhores e servos,
possuidores e coisas possuídas. Antes,
muito antes
do amor, do sangue e da sede, antes
da viagem, antes da subida, antes
do declive. Desde sempre
muito antes da morte.

 
Inês Lourenço
In A Disfunção Líríca, & etc, 2007, Lisboa

 

 




terça-feira, 25 de março de 2014

O Sonho de Wadjda


(...)
"Conheci Wadjda, uma rapariguinha de 10 anos que não se conforma a ser diferente. Ela tem um amigo da mesma criação, naquela idade em que rapazes e raparigas ainda podem ter algum convívio. E estão sempre a competir. Ele tem uma bicicleta e ela aposta que seria capaz de andar mais depressa do que ele se tivesse uma também. Mas uma bicicleta não é coisa para meninas, sobretudo das bem-comportadas, socialmente aceites. A ambição dela é, assim, coisa pouca - uma bicicleta -, mas vai desunhar-se para conseguir uma. É claro que o que ela quer mesmo é coisa muito maior: ser igual a ele.
  "O Sonho de Wadjda" é um filme de uma espantosa acuidade no desenho da situação feminina na Arábia Saudita, onde uma mulher não pode conduzir um automóvel, fora de casa deve vestir uma burka negra até aos pés, é normal estar casada aos 15 anos com um marido arranjado pela família, a quem deve obediência. Ele, todavia, pode ter mais do que uma mulher, pois a letra do Corão permite a poligamia. Extraordinário é que as autoridades tenham permitido a uma mulher, Haifaa Al-Mansour, realizar um filme num país onde as salas de cinema são proibidas e onde não há nenhuma tradição de produção (bem diferente do que se passa no Egipto, mesmo ali ao lado). "O Sonho de Wadjda" é, por isso, muito mais do que um filme. É um gesto - e que ninguém se engane com o seu ar afável e cálido. É de combate e de duro combate que se trata. Como em "Esposas e Concubinas" de Yimou, em "Offside - Fora-de-Jogo" de Panahi, em "O Destino", de Chahine, o cinema leva-nos lá longe para nos mostrar gente que sentimos aqui perto, combate também nosso."


Jorge Leitão Ramos, in ATUAL 22 de Março 2014

quinta-feira, 20 de março de 2014

Dia Mundial da Poesia


Passageira

 

O poema que não
surpreende nem afirma
a inutilidade de si, nem ensina
a olhar a certa dissolução
das coisas, nem interroga
o desencanto

 

É uma espécie de prurido
nas nossas costas, coisa
irritante e passageira
que logo se esquece.


I.L.
in A Disfunção Lírica (2007)
 
 
 
REESCRITA
 
Fender os versos
com a lâmina implacável do
tempo. No umbigo do poema cravar
o sabre rente às vísceras dos verbos,
à linfa de adjectivos. Despedaçar
os músculos dos sentidos. Abrir
a rede viária do sangue. Romper
a velha epiderme.
 
 
 
I.L.
in Coisas que Nunca (2010)
 
 

 

segunda-feira, 17 de março de 2014

Luís Filipe Castro Mendes


É verdade, somos do Sul.
Teve razão em reparar em nós.
Somos aqueles que passámos
de pedreiros e mulheres-a-dias,
que cumpriam as suas tarefas
com modéstia e simplicidade,
a devedores alegres e inconscientes,
que vivem à custa dos sacrifícios
dos operários da Renânia-Palatinado.
Somos nós mesmos, gnaedige Frau.

Sim, eu li como viveram os seus pais
nesse ano em que perderam a guerra:
nas caves encharcadas
de prédios em ruínas,
com esmolas avulsas
dos soldados da Ocupação.

Mas reparou
como depois foram tratados
pelos vencedores?

Sim, você disse-me também
que desde a adolescência
não compreende
que tenha de pagar
pelas culpas dos seus pais
e dos criminosos
que governaram o seu povo,
antes mesmo de você ter nascido.

Mas se para a vossa língua
dívida e culpa
são a mesma palavra,
então seremos nós agora a pagar
até aos netos dos nossos netos,
já que as vossas dívidas estão saldadas?
É isso, gnaedige Frau?



'Conversa no Tiergarten' in "A misericórdia dos mercados", Assírio & Alvim 2014

segunda-feira, 3 de março de 2014

A BULA de Março

http://www.correiodoporto.pt/a-bula/a-bula-de-marco