terça-feira, 13 de novembro de 2012

EPHEMERAS

COISAS QUE SE FAZEM DE PÉ

Gervásio resolveu pensar nas coisas que se podiam fazer de pé, sentado ou deitado. De pé, podia-se fazer quase tudo; até dormir, pois tinha visto umas litografias antigas, onde, num albergue de mendicidade, havia uma grossa corda suspensa de um lado a outro, para os mendigos passarem a noite, apoiando os sovacos. Afinal, quase tudo se podia fazer de pé, desde uma honesta mijadela até uma rapidinha ocasional. Também já vira carteiros, polícias e cobradores a escreverem de pé, na rua. E até já frequentara umas aulas super-lotadas, em que os alunos tomavam apontamentos de pé. Também assim se exercia a maioria dos ofícios e trabalhos agrícolas, se tocavam vários instrumentos, se dançava. Mas, pensando melhor, quando um gajo tem azares, até se faz tudo de outras maneiras. Deitado. Sentado. Recostado. E fazem-se coisas sonhadas, imaginadas. Sonhar e imaginar, dizem alguns, são acções. Mexem. Coisa batida, bahhh! Mas, dá jeito acreditar nisso, ao menos, de vez em quando… Assim pensava, ao colo da companheira. A cadeira ortopédica.

(pág.28)

PRECIPÍCIO

Quando o solista se precipita nas teclas como um ser arremessado aos abismos, está envolto na circunstância incerta a que se chama virtuosismo. Esta permite-lhe pôr a técnica laboriosamente entretecida no corpo desde a infância, como suporte da densidade das emoções com que nos vai contagiando. Quando num prestíssimo ou numa coda rutilante de velocidade e percussão melódica ou pós-melódica os meus olhos se fixam na figura frágil do intérprete na sua miraculosa performance, experimento sempre, por osmose, aquele frisson do trapezista antes do triplo salto ou do esquiador em descendente trilho. As palmas e os bravos são a catarse necessária e desejável. Numa sala de concertos pode assistir-se ao que não se assiste na vida. Finais felizes.

(pág.32)

Ed. Companhia das Ilhas, Lajes do Pico, Outubro 2012

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