terça-feira, 10 de julho de 2012

Arte da Revelação

Câmara Escura – uma antologia


Autora: Inês Lourenço

Antologiador: Manuel de Freitas
Editora: Língua Morta

N.º de páginas: 44
ISBN: 978-989-97718-0-2
Ano de publicação: 2012

Antologiar um poeta é sempre um trabalho de reenquadramento. Ao fazer uma escolha, ao reduzir um corpus muitas vezes extenso a um núcleo duro de poemas essenciais, o antologiador cria uma nova visão da obra, que tanto pode reflectir o arco completo da sua diversidade temática, ou estilística, como incidir apenas em certas linhas-mestras, ignorando outras. Em Câmara Escura, a antologia que Manuel de Freitas fez do trabalho de Inês Lourenço, estamos perante um caso extremo de depuração. Dos nove livros publicados pela autora portuense em três décadas, de Cicatriz 100% (1980) a Coisas que Nunca (2010), foram seleccionados apenas 30 poemas. É como se Freitas equivalesse cada livro de Inês Lourenço a um rolo fotográfico do qual só retira três ou quatro imagens, isolando-as do contexto original, inserindo-as numa outra narrativa poética e revelando-as à luz vermelha do seu sentido crítico, como aliás o título da antologia sugere.

Estes são poemas de uma notória contenção formal, por onde passam vinhetas urbanas (da «tristeza inerme dos telhados» às transformações sociais intuídas através da roupa posta a secar), exercícios de ironia (o requiem pela criadora da boneca Barbie), gestos soltos (um cigarro que se acende na praia, apesar do vento) e pequenas observações quotidianas (os estalidos da madeira em casas velhas; a irresistível inutilidade ronronante dos gatos). Num tempo em que as «musas / ficaram desempregadas», Inês Lourenço dá importância à «carpintaria dos versos» e usa a «faca incandescente» que separa «o corpo das palavras / da substância do mundo», mas desconfia da beleza enquanto horizonte do poeta e do lirismo apaziguador, com a sua «indústria de incensos». Para esta autora, o poema deve nascer para a mudez, mesmo que respire por sons. Deve interrogar o desencanto e assistir à «certa dissolução / das coisas». Ou, como se diz numa das várias artes poéticas incluídas na antologia, mostrar «do rosto não o facto mas o feixe / do timbre não o fundo mas a fenda / da venda não a fresta / mais que o laço».

Avaliação: 8/10
[Texto publicado no n.º 114 da revista Ler]


http://bibliotecariodebabel.blogspot.com

3 comentários:

Anónimo disse...

Não encontrei nada no n.º 113, mas no n.º 114 encontrei um texto igualzinho só que não é anónimo como este e vem assinado por José Mário Silva.
Mas ainda bem que leio este texto, pois quando li a crítica de Fernando Guimarães no JL fiquei a pensar que era o "último livro" de Inês Lourenço e não uma mera antologia.

pilantra disse...

Também encontrei esses «desencontros».
Tudo me leva a crer que o texto é, de facto, de José Mário Silva e que o erro no número da Ler se deverá a qualquer pormenor de ajustamento na edição da revista.

logros disse...

O texto postado foi colhido no blog "Bibliotecário de Babel", efectivamente da autoria do escritor e crítico José Mário Silva. Para quem parece seguir com tanta atenção as edições de poesia portuguesa, seria de esperar uma dedução mais rápida, uma vez que o mesmo texto copiado do referido blog contém todos os elementos da edição da revista em que foi publicado. Quanto aos desacertos acerca do nº da revista em que o texto se insere são obviamente da responsabilidade da respectiva fonte ou da edição da própria revista. O link a que me refiro é o seguinte: http://bibliotecariodebabel.blogspot.com