In Ladrador, pág. 37, Edições Averno, Lisboa, 2012.
Nota: Integram esta edição da Averno os seguintes poetas:
Ana Paula Inácio; Diogo Vaz Pinto; João Almeida; Jorge Roque; Manuel de
Freitas; Miguel Martins; Rui Baião; Rui Nunes; Rui Pires Cabral e Vitor
Nogueira.
De 18 a 21 de Abril de 2012, a Escola das Artes da Universidade Católica no Porto volta a abrir portas à estética a duas cores. A 9ª edição do Festival Audiovisual Black & White, que recebe vídeos, áudio e fotografias a preto e branco, levará a competição obras provenientes dos 4 cantos do mundo.
Com características únicas a nível mundial, a iniciativa nasceu da necessidade de responder a uma crescente sensibilidade do público para a especificidade do preto e branco, abandonando o preconceito que relaciona esta estética com obras dos primórdios do cinema.
Além da aposta em vídeos e fotografias a duas cores, o festival estimula igualmente a criação de ambientes sonoros que remetam para o "preto e branco".
Ao longo de quatro dias, para além das competições, serão levadas a cabo diversas actividades ligadas ao mundo audiovisual, desde artist talks, screenings, até extensões de outros festivais internacionais. As noites serão também animadas com um programa cultural paralelo.
Dia 21 de Abril Festival B&W - Closing ceremony Soirée - Concert Jean-Claude Risset () 21:45 - "Duos pour un(e) pianiste" - Jean-Claude Risset Piano: Sofia Lourenço Live electronics: André Perrotta & Samuel Van Ransbeeck
[Resposta ao inquérito sobre Poesia e Resistência realizado por Ana Luísa Amaral, Joana Matos Frias, Pedro Eiras e Rosa Maria Martelo para a LyraCompoetics]
INQUÉRITO
A poesia é uma forma de resistência? Sempre, por definição? Ou apenas em determinados contextos – sociais, políticos, culturais? Como pode resistir a poesia e a quê?
Respondem os poetas:
A associação destes dois vocábulos “poesia e resistência” corresponde, usualmente, numa certa vulgata algo superficial, ao conjunto de poéticas ou aos denominados textos de intervenção, que têm por objectivo a denúncia de um regime político criminoso e repressivo.
Parece, não sei se por definição ou dúvida, que a poesia desde tempos imemoriais foi sempre uma forma de resistência aos discursos dominantes, às tarefas esclavagistas, ao torpor repetitivo das horas, às finitudes de todo o género. Desde as velhas tradições orais, do rimance e da canção de gesta, que graças a oportunas recolhas vêm resistindo até à actualidade, podemos igualmente relembrar as canções de trabalho que ainda hoje perduram na cada vez mais parca ruralidade portuguesa.
A poesia é, decerto, um outro olhar para além do senso comum, e de todos os condicionalismos sociais, morais, estéticos ou outros. Como disse Artur Rimbaud, La liberté libre não pode ser assenhoreada por nenhum mandato. Quando me acerco de um novo poeta quero ser surpreendida, entrar numa mundividência que desconhecia, sair daquele livro de poemas com algo jamais lido. Por isso, o poema será tanto mais surpreendente, quanto mais altere a percepção do leitor. Com isto se preservará da usura do tempo e para além de respeitáveis e necessários comprometimentos circunstanciais a poesia resistirá.
É, no entanto, possível aliar, simbioticamente, várias “resistências” num só texto. Citarei, por exemplo, Paul Celan, no conhecido poema Todesfuge (Fuga da Morte), que conseguiu ser resistente a todos os títulos:
Leite negro da madrugada bebemo-lo ao entardecer
bebemo-lo ao meio-dia e pela manhã bebemo-lo de noite
bebemos e bebemos
cavamos um túmulo nos ares aí não ficamos apertados
Na casa vive um homem que brinca com serpentes escreve
escreve ao anoitecer para a Alemanha os teus cabelos de oiro
Margarete
(trad. de João Barrento e Y. K. Centeno)
Na nossa Literatura, é de sublinhar a lírica da resistência à ditadura desde final da década de trinta até 1974, tendo alguns autores sofrido até penas de prisão (Jaime Cortesão, Miguel Torga, Casais Monteiro, Borges Coelho e Veiga Leitão). Outros incluíram no seu discurso poético a denúncia da iniquidade da repressão, cantando O dia inicial inteiro e limpo da liberdade recuperada (Sophia de Mello Breyner).
Para terminar este breve depoimento, quero deter-me em dois exemplos maiores que não costumam ser conotados com o binómio “poesia e resistência”: um deles será Fernando Pessoa que, com a sua heteronímia conseguiu ultrapassar os condicionalismos de uma voz unívoca, de um só sujeito lírico, construindo um “drama-em-gente”, onde todas as inter-subjectividades são possíveis. O outro exemplo é do século XVI, mas, surpreendentemente, parece aplicável ao Portugal da actualidade:
Não mais, Musa, não mais, que a Lira tenho
Destemperada e a voz enrouquecida,
E não do canto, mas de ver que venho
Cantar a gente surda e endurecida.
O favor com que mais se acende o engenho
Não no dá a pátria, não, que está metida
No gosto da cobiça e na rudeza
Duma austera, apagada e vil tristeza.
(Os Lusíadas, Canto X, Est. 145)
Mas, como se verifica, já estamos no século XXI e resistimos à austera, apagada e viltristeza quinhentista, lendo estes geniais decassílabos.
Vem do grego antigo, como quase tudo, a palavra "antologia". Sendo que "anthos" significa "flor" e o resto da palavra: "conjunto", "reunião". Assim, as "reuniões" ou compilações de textos de um autor costumam ser suculentas brochuras, para que a amostragem seja o mais elucidativa possível, duma obra ou temática.
No caso da Poesia, que é um género literário que pende mais para avocação da intensidade e contenção, em oposição à quantidade do que qualquer outro género, as antologias bem fornidas de lombada e inclusas páginas, são frequentes. Só que nunca são lidas na íntegra, a não ser por eventuais ensaístas ou outros estudiosos do texto poético. Os parcos leitores folheiam escassas páginas e colocam na estante, se é que as estantes não-virtuais ainda se vão continuar a usar.
As convencionais antologias de poemas recorrem, muitas vezes, a certos estratagemas: têm, por exemplo, umas protecções, no início e no final, chamadas prefácios e posfácios, geralmente encomiásticos, que se destinam a recomendar e a explicar, ao presumível e desinformado incauto, as virtudes e potencialidades do livro e do autor. Depois há mais uns truques gráficos e de custos editoriais, tipo: papel com boa gramagem, um poema por página, mesmo que sejam dísticos, texto só impresso nas páginas pares ou ditas nobres, etc. Já vi obras mais que escassas em títulos e textos aparecerem antologiadas em grossos volumes, numa legitimação de papel de boa gramagem e pouco mais de substantivo. Está bem que o denominado aspecto gráfico é importante na edição do texto poético, mas deixem a poesia ter o seu corpo-a-corpo com o presumível leitor. Ela já tem suficientes imagens dentro das palavras para nos iluminar os sentidos. Autonomizem-se dos padrinhos prefaciadores e posfaciadores. Gozem as antologias breves, escolhendo as palavras e o gosto delas, avosso bel-prazer. Essa liberdade, que nem sempre existiu, ainda é nossa.
Ó tocadora de harpa, se eu beijasse
Teu gesto, sem beijar as tuas mãos!,
E, beijando-o, descesse p'los desvãos
Do sonho, até que enfim eu o encontrasse.
Tornado Puro Gesto, gesto-face
Da medalha sinistra - reis cristãos
Ajoelhando, inimigos e irmãos,
Quando processional o andor passasse!...
Teu gesto que arrepanha e se extasia...
O teu gesto completo, lua fria
Subindo, e em baixo, negros, os juncais...
Caverna em estalactites o teu gesto...
Não poder eu prendê-lo, fazer mais
Que vê-lo e perdê-lo!... E o sonho é o resto...
Não, não, não subscrevo, não assino
que a pouco e pouco tudo volte ao de antes,
como se golpes, contra-golpes, intentonas
(ou inventonas - armadilhas postas
da esquerda prá direita ou desta para aquela)
não fossem mais que preparar caminho
a parlamentos e governos que
irão secretamente pôr ramos de cravos
e não de rosas fatimosas mas de cravos
na tumba do profeta em Santa Comba,
enquanto pra salvar-se a inconomia
os empresários (ai que lindo termo,
com tudo o que de teatro nele soa)
irão voltar testas de ferro do
capitalismo que se usou de Portugal
para mão-de-obra barata dentro ou fora.
Tiveram todos culpa no chegar-se a isto:
infantilmente doentes de esquerdismo
e como sempre lendo nas cartilhas
que escritas fedem doutras realidades,
incompetentes competiram em
forçar revoluções, tomar poderes e tudo
numa ânsia de cadeiras, microfones,
a terra do vizinho, a casa dos ausentes,
e em moer do povo a paciência e os olhos
num exibir-se de redondas mesas
em televisas barbas de falácia imensa.
E todos eram povo e em nome del' falavam,
ou escreviam intragáveis prosas
em que o calão barato e as ideias caras
se misturavam sem clareza alguma
(no fim das contas estilo Estado Novo
apenas traduzido num calão de insulto
ao gosto e à inteligência dos ouvintes-povo).
Prendeu-se gente a todos os pretextos,
conforme o vento, a raiva ou a denúncia,
ou simplesmente (ó manes de outro tempo)
o abocanhar patriótico dos tachos.
Paralisou-se a vida do país no engano
de que os trabalhadores não devem trabalhar
senão em agitar-se em demandar salários
a que tinham direito mas sem que
houvesse produção com que pagá-los.
Até que um dia, à beira de uma guerra
civil (palavra cómica pois que
do lume os militares seriam quem tirava
para os civis a castanhinha assada),
tudo sumiu num aborto caricato
em que quase sem sangue ou risco de infecção
parteiras clandestinas apararam
no balde da cozinha um feto inexistente:
traindo-se uns aos outros ninguém tinha
(ó machos da porrada e do cacete)
realmente posto o membro na barriga
da pátria em perna aberta e lá deixado
semente que pegasse (o tempo todo
haviam-se exibido eufóricos de nus,
às Áfricas e às Europas de Oeste e Leste).
A isto se chegou. Foi criminoso?
Nem sequer isso, ou mais do que isso um guião
do filme que as direitas desejavam,
em que como num jogo de xadrez a esquerda
iria dando passo a passo as peças todas.
É tarde e não adianta que se diga ainda
(como antes já se disse) que o povo resistiu
ser iluminado, esclarecido, e feito
a enfiar contente a roupa já talhada.
Se muita gente reagiu violenta
(com as direitas assoprando as brasas)
é porque as lutas intestinas (termo
extremamente adequado ao caso)
dos esquerdismos competindo o permitiram.
Também não vale a pena que se lave
a roupa suja em público: já houve
suficiente lavar que todavia
(curioso ponto) nunca mostrou inteira
quanta camisa à Salazar ou cueca de Caetano
usada foi por tanto entusiasta,
devotamente adepto de continuar ao sol
(há conversões honestas, sim, ai quantos santos
não foram antes grandes pecadores).
E que fazer agora? Choro e lágrimas?
Meter avestruzmente a cabeça na areia?
Pactuar na supremíssima conversa
de conciliar a casa lusitana,
com todos aos beijinhos e aos abraços?
Ir ao jantar de gala em que o Caetano,
o Spínola, o Vasco, o OteIo e os outros,
hão-de tocar seus copos de champanhe?
Ir já fazendo a mala para exílios?
Ou preparar uma bagagem mínima
para voltar a ser-se clandestino usando
a técnica do mártir (tão trágica porque
permite a demissão de agir-se à luz do mundo,
e de intervir directamente em tudo)?
Mas como é clandestina tanta gente
que toda a gente sabe quem já seja?
Só há uma saída: a confissão
(honesta ou calculada) de que erraram todos,
e o esforço de mostrar ao povo (que
mais assustaram que educaram sempre)
quão tudo perde se vos perde a vós.
Revolução havia que fazer.
Conquistas há que não pode deixar-se
que se dissolvam no ar tecnocrata
do oportunismo à espreita de eleições.
Pode bem ser que a esquerda ainda as ganhe,
ou pode ser que as perca. Em qualquer caso,
que ao povo seja dito de uma vez
como nas suas mãos o seu destino está
e não no das sereias bem cantantes
(desde a mais alta antiguidade é conhecido
que essas senhoras são reaccionárias,
com profissão de atrair ao naufrágio
o navegante intrépido). Que a esquerda
nem grite, que está rouca, nem invente
as serenatas para que não tem jeito.
Mas firme avance, e reate os laços rotos
entre ela mesma e o povo (que não é
aqueles milhares de fiéis que se transportam
de camioneta de um lugar pró outro).
Democracia é isso: uma arte do diálogo
mesmo entre surdos. Socialismo à força
em que a democracia se realiza.
Há muito socialismo: a gente sabe,
e quem mais goste de uns que dos outros.
É tarde já para tratar do caso: agora
importa uma só coisa - defender
uma revolução que ainda não houve,
como as conquistas que chegou a haver
(mas ajustando-as francamente à lei
de uma equidade justa, rechaçando
o quanto de loucuras se incitaram
em nome de um poder que ninguém tinha).
E vamos ao que importa: refazer
um Portugal possível em que o povo
realmente mande sem que o só manejem,
e sem que a escravidão volte à socapa
entre a delícia de pagar uma hipoteca
da casa nunca nossa e o prazer
de ter um frigorifico e automóveis dois.
Ah, povo, povo, quanto te enganaram
sonhando os sonhos que desaprenderas!
E quanto te assustaram uns e outros,
com esses sonhos e com o medo deles!
E vós, políticos de ouro de lei ou borra,
guardai no bolso imagens de outras Franças,
ou de Germânias, Rússias, Cubas, outras Chinas,
ou de Estados Unidos que não crêem
que latinada hispânica mereça
mais que caudilhos com contas na Suíça.
Tomai nas vossas mãos o Portugal que tendes
tão dividido entre si mesmo. Adiante.
Com tacto e com fineza. E com esperança.
E com um perdão que há que pedir ao povo.
E vós, ó militares, para o quartel
(sem que, no entanto, vos deixeis purgar
ao ponto de não serdes o que deveis ser:
garantes de uma ordem democrática
em que a direita não consiga nunca
ditar uma ordem sem democracia).
E tu, canção-mensagem, vai e diz
o que disseste a quem quiser ouvir-te.
E se os puristas da poesia te acusarem
de seres discursiva e não galante
em graças de invenção e de linguagem,
manda-os àquela parte. Não é tempo
para tratar de poéticas agora.