quinta-feira, 29 de março de 2012
Pintura e Poesia
Manuela Imar, «Da saia que te fica a matar-me»(pormenor), óleo s/tela.
Carcavelos,2009.
sei que já não podes chegar a esta hora
Sei que te espero porque te inventei
Mas tudo isto não é suficiente para que não espere para que não espreite de 14 em 14 minutos a chegada de quem vem de autocarro
Sei que não existes Ou se existes é apenas porque existo Ou talvez existas sem saber que existo Mas continuo a espreitar os autocarros de 14 em 14 minutos Trazem menos gente esta noite Alguns vêm até vazios Tantos que vêm vazios
E todos os carros têm barulho de autocarros esta noite Até os miúdos na rua imitam os autocarros E os homens despedem-se apressados gritando que vão apanhar o autocarro
E eu cá em cima à espera do que não tenho
Á espera do autocarro contigo lá dentro
Á espera do autocarro que te deixará na paragem ao cimo
da rua
À espera
Manuela Imar, AS COISAS (INTERVALO), 1961.
OUÇAM-NOS
Temos muitos nomes
temos muitos nomes em todo o mundo
tantos
E temos rosto
e palavras
que às vezes calamos
ou criam raízes nodosas nos nossos corpos
ou guardamos nos corações dos nossos filhos
mas
de outras vezes
estilhaçam a barriga peçonhenta da mentira
ou são claridade
espalham pequenas sementes
palavras novas
Qualquer mulher é mãe
a primeira
ou a última
do mundo
Não desejámos
que tivesse sido sangrenta
a primeia ferida
aberta do nosso corpo
Por nós
em nós
entraram
a primeira luz do mundo
e o negrume dos seres nascidos das sombras
O nosso ventre
quente de terra
é mundo aberto ao mundo
Do escuro
quente
das nossas entranhas
sai luz a jorros
odores inebriantes
de vida
sal
e espuma
e sangue
e água
de vida
Somos
somos corpos
com a sabedoria
do amor
somos amor
antes e depois
de todos os deuses
antes e depois
de haver
homens
e plantas
e peixes
Inventamos canções
quando um corpo sabe
dar-se em nós
inventamos mares
quando dois corpos
se erguem divinamente
oferecemos o nosso sal
inesgotável
e sorrimos como ninguém
Somos fortes como montanhas
mas às vezes
parecemos ceder
como toalhas velhas de linho
à força dos brutos
mas um dia
havemos de dizer
basta
aos anjos negros
Temos a sabedoria
de sermos assim
nem deusas
nem génios
incompletas
vigilantes do mundo
ou do que resta dele
Alguns seres
vestidos de sombras
querem dar-nos
prazo de validade
e dizem-nos:
"Mulheres
acabou o tempo da claridade"
E querem rasgar-nos os ventres
e entregar meninas e meninos
à madrasta do dever cego
querem vergar-nos
os malditos anjos negros
Esses seres não-nascidos
não sabem
que nós somos a longa paciência do mundo
os olhos que vêem para além das estrelas
um barco levantado em direcção ao princípio
Sabemos
dizer não
o sim da obediência
só o terão de nós
rasgando-nos os lábios
e fechando-nos os ventres
Mas
se isso acontecesse
o mundo deixaria de ser mundo
Não
a luz é mais forte
Os nossos corpos
largos
sempre
hão-de ser
mundo
Ouçam as nossas vozes
são vozes
de todas nós
Às vezes somos apenas
em corpos doridos
e em almas apagadas
mas somos sempre nós
vivas
Ouçam-nos.
Carlos Alberto Machado, CORPOS, azulcobalto, Lajes do Pico, 2011.
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terça-feira, 27 de março de 2012
Das Lied Im Grünen
Amava naquele lied uma infância
de peixes brilhantes, quedas de água,
incomparáveis prados, poldros
de olhar meigo, o jardim de Inverno
para as confidências e as pequenas
traições. A grande biblioteca
com bafo de capela. O mistério
oculto no vestuário dos homens e
nas lágrimas das mulheres. O dorso
do pai levando-a adormecida
para o leito, no quarto ermo
povoado de infindáveis, a lassidão
melódica feria um corpo
demasiado escasso
para a morte.
Berlim, 96
Inês Lourenço, Um Quarto com Cidades ao Fundo, Quasi, V.N.Famalicão, 2000.
quarta-feira, 21 de março de 2012
Dia Mundial da Poesia
Também nasceu neste dia, em Leipzig, Johann Sebastian Bach (1685 - 1750). Aqui, na genial interpretação de Glenn Gould.
ARTE POÉTICA I
Do texto não as pinças mas o lábio
da trama não o fio mas o hausto
do rosto não o facto mas o feixe
do timbre não o fundo mas a fenda
da venda não a fresta
mais que o laço.
ARTE POÉTICA II
(coda)
Poluída e rútila
é a beleza de um verso
cercado o movente sangue
sobre a neve,
lugar sem bússola onde escassos chegam,
sem país, sem linho, sol ou noite.
ARTE POÉTICA III
O poeta disse: a inspiração
não existe. De há muito, as musas
ficaram desempregadas. E desvendou
algum método de trabalho
à parca assistência, altivo e contemporâneo,
enquanto lá fora o mar e as altas palmeiras
resistindo ao tráfego do fim da tarde,
pouco se interessavam
pela carpintaria dos versos.
Inês Lourenço, Câmara Escura,Ed. Língua Morta, Lisboa, 2012.
Poemas escolhidos por Manuel de Freitas
ARTE POÉTICA I
Do texto não as pinças mas o lábio
da trama não o fio mas o hausto
do rosto não o facto mas o feixe
do timbre não o fundo mas a fenda
da venda não a fresta
mais que o laço.
ARTE POÉTICA II
(coda)
Poluída e rútila
é a beleza de um verso
cercado o movente sangue
sobre a neve,
lugar sem bússola onde escassos chegam,
sem país, sem linho, sol ou noite.
ARTE POÉTICA III
O poeta disse: a inspiração
não existe. De há muito, as musas
ficaram desempregadas. E desvendou
algum método de trabalho
à parca assistência, altivo e contemporâneo,
enquanto lá fora o mar e as altas palmeiras
resistindo ao tráfego do fim da tarde,
pouco se interessavam
pela carpintaria dos versos.
Inês Lourenço, Câmara Escura,Ed. Língua Morta, Lisboa, 2012.
Poemas escolhidos por Manuel de Freitas
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segunda-feira, 19 de março de 2012
APRENDIZ DE MAQUIAVEL
O Prof. Jorge Miranda, num artigo da “Actual”, defende o Acordo Ortográfico. Percebe-se que, para ele, os fins justificam os meios. Mesmo que os fins sejam um mero e vago palpite de que o Português lucrará qualquer coisa com o AO. E mesmo que os meios sejam o abastardamento grotesco e a descaracterização caricatural da nossa Língua. Parabéns, professor! Está a caminho de se tornar um Maquiavel chapado!
António Manuel Pires Cabral, in Facebook
https://www.facebook.com/profile.php?id=100002359432836
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acordo ortográfico
quinta-feira, 15 de março de 2012
Pastéis de nata
(...)
"Todos os meses, Vítor Gaspar entregará ao Álvaro uma pequena soma, com a indicação de não gastar tudo em guloseimas. É mais uma medida de contenção de despesas e racionalização de custos: não tendo Portugal uma economia, acaba por não se justificar que tenha um ministério da Economia. É interessante constatar que a única economia que funciona bem em Portugal é a economia paralela - curiosamente, aquela que os economistas não definem nem programam. Talvez o misterioso esvaziamento do Álvaro se deva ao desajustamento das suas políticas.
Santos Pereira também é ministro do Emprego, o que nesta altura parece ser de mau gosto. O objectivo de uma sociedade moderna não é acabar com o desemprego. É fazer com que todos os desempregados sejam como André Villas-Boas. O Governo já está apostar, e com força, no desemprego. Só falta apostar no desemprego de qualidade. Basta uma pequena afinação política".
Ricardo Araújo Pereira in Visão, 8 de Mar de 2012.
http://visao.sapo.pt/ricardo-araujo-pereira=s23462
terça-feira, 13 de março de 2012
Marilyn Moore
LOVER COME BACK TO ME
Na cama do hotel, em Tulsa, limitava-se
a trautear a canção em que prometera
dar o seu melhor, num esboço de epitáfio.
Percebia agora que há temas
que cantamos melhor deitados,
longe de qualquer palco.
Bebeu um copo de Woodford,
para trazer um pouco mais de sombra à voz.
Não podia adivinhar, em Tulsa, que
a volúpia em breve se tornaria uma súplica,
o género de coisas que só dizemos a ninguém.
Manuel de Freitas, Marilyn Moore,Lisboa, Assírio e Alvim, 2011.
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quarta-feira, 7 de março de 2012
No Bartleby Bar
Apresentação esta sexta-feira, pelas 22h30, no Bartleby Bar. Rua Imprensa Nacional, 116b
(cave do restaurante BS). Em Lisboa.
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segunda-feira, 5 de março de 2012
A Criança Que Ri
CXXXII
O suspiro é uma palavra que me é próxima. Existirão, certamente, palavras um tanto ou quanto mais confusas, tais como alívio ou consolo. Eu sou um vivente disléxico. Quero dizer uma palavra e sai-me outra.
Morro sem soltar um único suspiro.
Construo o muro. Sobreponho argamassa sobre argamassa e não chego à flor.
Os comprimidos são tão ruidosos como a porta a que bato. Vinda do negrume vem a injecção. Enterrada no rabo amolecido.
Lembro-me de uma palavra e quero dizê-la. Quero dizer a palavra. Procuro de memória a palavra que não chego a dizer. Não basta saber dizer uma palavra para a dizer.
Eu altero a palavra para a dizer. Altero a palavra e isso basta.
Carlos Torres Figueiredo, Modo de Ler,Porto, 2012, p.p. 140.
Foi atribuído a este livro o Prémio de Poesia Eugénio de Andrade 2011 conforme vem assinalado na capa.
"Nasceu a 5 de Março de 1968, em Lisboa. Curta biografia. Tudo o mais são pormenores que poderiam ter sido de outro modo. Assim fossem".
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