quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

Cão Celeste nº 6


(…)
 
Depois de ti, Fernando.
Depois de ti vieram outros praticantes menores, sempre menores do que tu, e sem arca que se visse. E não mais correndo os mesmos riscos. E não mais adeptos de uma obscuridade assim heróica como a tua.
Desses, o mais relevante parece ser o grande Buda Agá-Agá.
Agora, já idoso e de pantufas calçadas, na sua casa de Cascais. Aguardando, aborrecendo-se. E quase nada escrevendo. Já um tanto perdido também ele, mas ainda sensível aos cantos de sereia da meninice e do esoterismo.
Mas não há comparação possível contigo, Fernando, que foste, para além de ti e do mistério de ti, do mistério que sempre se é, a tua especialíssima e enorme circunstância.
 
Tu foste mais longe, mais além, mais fundo e mais profundo: na realização e na perdição, na sinceridade e na mistificação. Na imobilidade e no voo. No sonho, na dispersão, na despersonalização.
Rimbaud, é da legenda, perdeu as botas na Abissínia. Pior do que isso, perdeu a perna, perdeu a saúde e a vida. Tu, Fernando, foi em ti que te perdeste.
A cada um o seu deserto.
Tu limitaste-te a sumir por Lisboa, nessas tuas ruas da Baixa.
E tanto te perdeste que pelos vistos ainda lá estás, ou por lá andas ainda.
Visível ou invisível, sumiste até não seres ninguém.
Até seres ninguém.
 
Rui Caeiro In Poema para o Fernando seguido de algumas falripas de prosa também para o Fernando.  Cão Celeste nº 6. Lisboa, Novembro de 2014.