quarta-feira, 26 de novembro de 2014
Manoel de Barros (1916-2014)
O apanhador de desperdícios
Uso a palavra para compor meus silêncios.
Não gosto das palavras
fatigadas de informar.
Dou mais respeito
às que vivem de barriga no chão
tipo água pedra sapo.
Entendo bem o sotaque das águas
Dou respeito às coisas desimportantes
e aos seres desimportantes.
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas mais que a dos mísseis.
Tenho em mim um atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior do que o mundo.
Sou um apanhador de desperdícios:
Amo os restos
como as boas moscas.
Queria que a minha voz tivesse um formato
de canto.
Porque eu não sou da informática:
eu sou da invencionática.
Só uso a palavra para compor meus silêncios.
Etiquetas:
poesia brasileira
quinta-feira, 20 de novembro de 2014
Poesia e Morte
Finitudes
1
Em
cada fruto a morte amadurece, escreve Eugénio de Andrade num poema do livro As Mãos e os Frutos (1948). Aqui, surge-nos iluminado por um grande
poeta, um dos topos mais antigos de toda a Poesia. O amadurecer como um crescendo
para a morte, ou melhor dizendo, qualquer início de uma existência é a garantia
da sua cessação. Múltiplas mitologias e teogonias de Oriente e Ocidente,
crenças e religiões monoteístas e politeístas reflectiram sempre a nossa mortalidade,
temor e formas de a representar e transfigurar, perante o poder intemporal de
entidades divinas, que por oposição aos terráqueos têm o dom da imortalidade. A
vita brevis
horaceana conduz-nos através
das sucessivas idades históricas e estéticas delas decorrentes, ao inapagável
tema da finitude, que tem na palavra poética a configuração de uma atitude
elegíaca. Descendendo da Grécia antiga e saindo do paganismo para o mundo cristão,
para aí assumir crenças salvíficas, tem uma nova e moderna inflexão com Rilke,
onde a solidão ontológica lança o célebre apelo: Se eu gritar, quem poderá
ouvir-me, nas hierarquias dos Anjos? –
nas conhecidas Elegias de Duíno. Digamos, pois, que a expressão textual de uma
perda ou da previsão ou proximidade dela, se consubstancia no tom menor de
qualquer texto poético que traduza uma atitude de tónica disfórica acerca de qualquer
transitoriedade que nos afecta: ausências de todo o género, da terra natal, de
quem se ama, de uma companhia animal, da saúde própria ou alheia.
Muitas outras ausências, exílios e perdas se
inscrevem na poesia, como a do próprio sujeito poético, a de um estado intra-uterino,
que garantiria a protecção matricial, a da infância, a de crenças éticas ou religiosas
ou até o próprio poder visionário e transformador da arte dos versos,
porventura duvidando da afirmação holderlineana: O que permanece, os poetas
o fundam. O mito de Orfeu é, sem dúvida,
outra das milenares e inapagáveis legendas que, em todas as artes, da música à
pintura, ao teatro, ao cinema, mais se tem inscrito na poesia, desde recuados
tempos, com o seu conflito entre eros
e tanathos,
com um canto apolíneo que vence a morte, mas acaba derrotado por ela. No
entanto, a cabeça de Orfeu, arrastada pelas águas do Ebro, depois do crime
nefando das Ménades, continua a clamar o nome de Eurídice… O século XX com as
suas guerras sangrentas e métodos dirigentes que provocaram horrendos
genocídios, como o holocausto, o estalinismo, a bomba de Hiroshima, etc, deixaram
na poesia e em todas as artes, uma profunda marca. Alguns nomes surgem imediatamente
como Paul Celan, Anna Akhmatova ou Marina Tsvetáeva. E ainda a conhecida asserção
(1949) de Theodor Adorno: Depois
de Auschwitz não há poesia possível. Se o silêncio do horror se impunha, perante a
constatação de monstruosas práticas entre humanos, privilegiando a elegia e o
luto, em breve se constatou que está nas palavras e particularmente na palavra
poética, dada a sua liberdade livre o genoma da transfiguração do sentido. Modaliza,
mesmo através do sarcasmo, da descrença ou da ironia a sequente circunstância
de permanecer vivo, para além da queda dos deuses, dos amores difíceis, da
inultrapassável degradação do corpo. Resta-nos concluir, que também a poesia
evidenciou o trabalho igualitário da morte, pois poderosos e mendigos terão
encontro irrecusável com ela. Contudo, no poema, podemos sempre subverter esses encontros, como escreveu Sophia: Nunca mais servirei senhor que possa morrer.
2
Comecei a publicar em 1980, desde logo com um
título, Cicatriz 100%, uma clara referência a um tecido cicatricial, que pressupunha
o desaparecimento de uma epiderme anterior.
Quase todos os títulos que se seguiram até 2012, com
Ephemeras, encerram uma nítida assunção da transitoriedade da
existência, da enganosa fulgurância dos inícios, do passageiro inebriamento
erótico, de tudo que se perde e se torna para sempre irrecuperável. Os Solistas (1994),
pretendendo evidenciar a circunstância daquele que, mesmo na criação, está radicalmente
só; A Enganosa Respiração da Manhã
(2002), uma espécie de carpe diem do
avesso, ou outros títulos de livros ou partes integrantes, como Câmara Escura,
Alguns Epitáfios, Erosivo
Eros são o anúncio inequívoco dessa
mundividência e representação. Igualmente Logros
Consentidos (2005), A
Disfunção Lírica (2007), Coisas
que Nunca (2010). A utilidade ou poder
salvífico da arte e mais concretamente da poesia, torna-se objecto de alguma
ironia, com o percurso da escrita a ser influenciado pela crescente vacuidade
das buscas humanas, que em grande parte se resumem a um hedonismo patético, a
um economicismo criminoso, a tecnologias intransitivas. Mas a palavra permite sempre
a subversão, a nostálgica raiva da espera. Termino com duas Artes Poéticas,
respectivamente de 1994 e 2000.
ARTE POÉTICA II
Poluída e rútila/ é a beleza de um verso/ cercado o
movente
sangue/ sobre a neve,/ lugar sem bússola onde
escassos
chegam,/ sem país, sem linho, sol ou noite.
in Os
Solistas.
ARTE POÉTICA III
O poeta disse: a inspiração/ não existe. De há
muito, as
musas/ ficaram desempregadas. E desvendou/ algum
método
de trabalho/ à parca assistência, altivo e
contemporâneo,/
enquanto lá fora o mar e as altas palmeiras/
resistindo ao
tráfego do fim de tarde,/ pouco se interessavam/
pela carpintaria
dos versos.
in Um
Quarto Com Cidades ao Fundo.
I.L. in relâmpago, nº 34, 2014. Página 83.
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