segunda-feira, 26 de maio de 2014
Carlos Drummond de Andrade
JOSÉ
E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama protesta,
e agora, José?
Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?
E agora, José?
Sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro, sua incoerência,
seu ódio - e agora?
Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?
Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse…
Mas você não morre,
você é duro, José!
Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha, José!
José, pra onde?
quinta-feira, 22 de maio de 2014
Thomas Bernhard
(...)
Cada escola enquanto comunidade e enquanto sociedade, cada escola, portanto, tem as suas vítimas e no meu tempo as vítimas eram, no liceu que frequentei, esses dois, o aleijado do arquitecto e o professor de Geografia, toda a baixeza (da sociedade) e toda a crueldade e terribilidade naturais enquanto doença dessa comunidade eram todos os dias descarregadas sobre esses dois, eram sobre esses dois levadas a explodir. Os seus padecimentos devidos à fealdade ou à incapacidade física eram todos os dias ridicularizados pela sociedade enquanto comunidade, que não pode suportar tais padecimentos, e com essa ridicularização tornavam-se um motivo de escárnio com que todos, alunos e professores, se divertiam constantemente, sempre que para isso surgia oportunidade, e também aí, nesse liceu, como em toda a parte quando se reúnem pessoas e sobretudo quando estão juntas em massas tão horríveis como nas escolas, o padecimento de um só ou o padecimento de alguns, como o padecimento do aleijado do arquitecto ou o padecimento do professor de Geografia, tornam-se objecto do seu infame divertimento, que não é senão uma repugnante perversidade.
(...)
in AUTOBIOGRAFIA, Ed. Sistema Solar, Lisboa 2014, pág.115.
quinta-feira, 15 de maio de 2014
Vítor Nogueira
ANZOL
Ao fim da tarde, o cardume desagrega-se. Inteiro,
procuro reunir os meus pedaços. É a sensatez
de não abandonar o esconderijo, a prudência
com que a ave canora evita o pássaro-da-morte.
Porém, noites há que me rebentam nos ouvidos.
Todas as experiências, todos os bocados de papel.
Um anzol à minha espera, a cidade é paciente,
não perdoa. Tem a astúcia da ave de rapina.
Bem sei: na vida, o primeiro golpe de génio
acontece no momento em que avaliamos
as nossas limitações. Mas, por muito calculistas
que sejamos, podemos realmente conhecer-nos
quando o abrigo se torna insuportável.
in BAGAGEM DE MÃO, Ed. & etc , Julho 2007, pág. 46.
quinta-feira, 1 de maio de 2014
A Língua Portuguesa
"A língua portuguesa, para aqueles que a amam e nela vivem e se exprimem, tem um imenso património acumulado em séculos de literatura, tem uma gramática que hoje em dia é cada vez mais descurada, transporta uma visão do mundo que nos identifica e em que nos reconhecemos, tem valores próprios e possibilidades expressivas extraordinárias
O meu objectivo naquilo que escrevo, objectivo sempre frustrado mas sempre reiterado, como o esforço de Sísifo, é o de que cada texto seja uma plena declaração de amor à minha língua. Amor intelectual, amor sensual e também amor profundamente oficinal, na luta pela expressão em que sinto necessidade de me realizar como utente qualificado dela. Amar, defender e valorizar a língua portuguesa deve ter para nós uma dimensão ética, uma dimensão estética, uma dimensão cívica e uma dimensão prática. Sem esse amor, visceralmente radicado em nós e inextrincavelmente entrosado nestas quatro perspectivas, não se nos torna possível o conhecimento do mundo"
Vasco Graça Moura in JL 910, de Agosto de 2005
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