sexta-feira, 29 de novembro de 2013
António Guerreiro
(...)
A cultura como redenção, decoração e fuga aos aborrecimentos quotidianos é um bem partilhado pelo humanismo dos filisteus, aqueles que se "atiram ao ornamento como o cão à salsicha", como dizia Karl Kraus.
(...)
in Estação Meteorológica, Ípsilon - Público, 29 Nov. 2013
Nota: A.G. é talvez a voz mais lúcida, informada e actualizada, que escreve ainda na nossa imprensa. Detecta as encenações, hipocrisias e logros que dão corpo a muitas atitudes bem pensantes, perfilhadas por muito boa gente. Por isso, ele é tão combatido e posto em questão pelos simplistas de pacotilha.
quarta-feira, 27 de novembro de 2013
Manuel de Freitas
BWV 232
«Uma asa partida, outra desfeita» - assim chegou
a pomba à livraria, trazida junto ao peito do poeta.
Chegámos a tempo de ver a santíssima trindade:
um deus ágil e vetusto, cristo cigano, com o cigarro
aceso, e a pomba enferma, pelos dois banhada.
E era como se nada mais importasse, ou se
suspendesse, abruptamente, o ruído plebeu da cidade,
o som martirizante das pessoas que passavam,
leves de alma, de honra, e sem palavras que luzissem.
Entardecia em Lisboa, a asa batia no cartão ocasional.
A mesma que talvez não volte a voar sobre os telhados
nus desta cidade. Porque o sangue, mais do que
o espírito, tende às vezes a parar, deixa-nos quietos
e tolhidos numa caixa de papelão e sofrimento
onde nem Deus, se existisse, nos poderia ajudar.
in CÓLOFON, Fahrenheit 451, Lisboa 2012, pág. 35.
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quinta-feira, 21 de novembro de 2013
Wislawa Szymborska
Elogio dos sonhos
Nos sonhos
pinto como Vermeer Van Delft.
Falo grego com fluência
e não apenas com os vivos.
Conduzo um automóvel
que me é obediente.
Sou hábil,
escrevo grandes poemas.
Escuto vozes
tão bem como os santos mais austeros.
Ficaríeis admirados
da perfeição com que toco piano.
Consigo voar como devia ser,
isto é, eu de mim própria.
Ao cair de um telhado
sei como descer levemente na verdura.
Não tenho problemas
em respirar debaixo de água.
Não me lamento:
consegui descobrir a Atlântida.
Fico contente porque, antes de morrer,
consigo acordar sempre.
A guerra a rebentar
e eu a virar-me para o melhor lado.
Sou, sem ter porém
que o ser, filho da época.
Aqui há alguns anos
vi dois sóis.
E, antes de ontem, um pinguim,
ali, muito nítido, ao pé de mim.
in PAISAGEM COM GRÃO DE AREIA, trd. de Júlio Sousa Gomes, RELÓGIO D'ÁGUA, Lisboa 1998, pág. 133 e 135.
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terça-feira, 19 de novembro de 2013
Teoria da Des-possessão
(...)
"As palavras vivem de serem vivas, da decisão que as possui, do arrebatamento interior, de não serem bens, propriedades, objectos que se usam e nos desgastam, mas intensidades, sopros onde os corpos se deslocam e se encontram. Amantes."
(...)
Silvina Rodrigues Lopes, in Teoria da Des-possessão (Sobre textos de Maria Gabriela Llansol), Averno, Lisboa 2013, pág. 9.
sexta-feira, 8 de novembro de 2013
quinta-feira, 7 de novembro de 2013
sexta-feira, 1 de novembro de 2013
Poemas com gatos ( V )
PORTUGUÊS VULGAR
O meu gato deixa-se ficar
em casa, farejando o prato
e o caixote das areias. Já não vai
de cauda erguida contestar o domínio
dos pedantes de raça, pelos
quintais que restam. O meu gato
é um português vulgar, um tigre
doméstico dos que sabem caçar ratos e
arreganhar dentes a ordens despóticas. Mas
desistiu de tudo, desde os comícios nocturnos
das traseiras até ao soberano desprezo
pela ração enlatada, pelo mercantilismo
veterinário ou pela subserviência dos cães
vizinhos. Já falei deste gato
noutro poema e da sua genealogia
marinheira, embarcada nas antigas
naus. Se o quiserem descobrir, leiam
esse poema, num livro certamente difícil
de encontrar. E quem procura hoje
livros de poemas? Eu ainda procuro,
nos olhos do meu gato, os
dias maiores de Abril.
I.L.
in LOGROS CONSENTIDOS, & etc, Lisboa 2005, pág.38.
QUE FAÍSCA FUGIU DO TEU OLHAR *
Nunca consegui despedir-me
dos meus mortos. Porque partíamos
para outras cidades, outras ruas, outros
sítios de despedida. Transporto
comigo esses finais antecipados,
novelos sem ponta, mimeses
sucessivas.
Mas os meus animais
sempre de mim se despediram, desde
o tigre doméstico, envenenado no quintal
por uma velhinha sinistra que
queria preservar as alfaces,
até ao meu último cão, escondido
no último dia, no canto mais escuro
da garagem, um sítio de partidas
que ele conhecia.
Vem dos animais
uma tal inteireza, um até ao fim, até
que a morte nos separe, tão intensamente
farejado, tão comovidamente lambido. O clarim
de um miado ao abrir da porta. O latir
festivo de todas as chegadas. A probidade
do humilde estado de andar
a quatro. A alegria arcaica de trincar, rilhar
o esburgado osso, o looping de garras
fulminantes para suster um voo. Endoidecer
ao cheiro do pescado. Escutar
sons inaudíveis, danado de atenção.
Só os nossos animais nos lançam longos e
verdadeiros olhares de saudade, antes
de partirem, na sua perfeita condição
de seres indivisíveis, para a ventura de
nenhum hades, nenhum céu.
* verso de um poema de Ruy Belo
I.L.
idem pág.43 e 44.
Nota: Tenho vindo a postar aqui, alguns poemas "felinos" que foram publicados em diversos livros meus. Já lá vão 10. Vou fazer um pequeno interregno, mas prometo que voltarei à temática porque ainda há mais...
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