segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Herberto Helder

irmãos humanos que depois de mim vivereis,
eu que fui obrigado a viver dobrados os oitenta,
fazei por acabar mais cedo vossos trabalhos cegos,
porque nestas idades já não nunca,
nem leituras embrumadas,
nem crenças, nem política das formas, nem poemas no
                                                                    futuro, nem
visitas extraterrestres de mulheres
exorbitantemente
nuas, cruas, sexuais, luminosas,
só vê-las um pouco, sim, mas vê-las também cansa,
é como trabalhar: stanca,
lavorare stanca,
queríamos tanto acreditar no milagre isabelino do pão e
                                                                         das rosas,
e só tínhamos que perder a alma,
hoje talvez eu mesmo acreditasse melhor, mas foi-se tudo,
enfim esses jogos gerais, ao tempo que se esgotaram!
livros, je les ai lus tous, e como de costume a carne é
                                                                  insondável,
estou mais pobre do que ao comêço,
e o mundo é pequeníssimo, dá-se-lhe corda, dá-se uma volta,
meia volta, e já era,
irmãos futuros do génio de Villon e do meu género baixo,
não peço piedade, apenas peço:
não me esqueceis só a mim, esquecei a geração inteira,
inclitamente vergonhosa,
que em testamento vos deixou esta montanha de merda:
o mundo como vontade e representação que afinal é como
                                                                                       era,
como há-de ser: alta,
alta montanha de merda - trepai por ela acima até à
                                                                  vertigem,
merda eminentíssima:
daqui se vêem os mistérios, os mesteres, os ministérios,
cada qual obrando a sua própria magia:
merda que há-de medrar melhor na memória do mundo


in Servidões,Assírio & Alvim 2013 Porto, p.90 e 91.


Nota: Finalmente, graças à generosidade de um amigo, que me emprestou um exemplar de "Servidões", tenho acesso a esta magnífica obra. Sim, porque não há só especuladores na troika; guardadas as devidas proporções, também há agiotas em Portugal; quanto mais não seja para fazerem uns cobres com o açambarcamento da edição de um livro de poesia.
          Este poema que transcrevo fez em mim o efeito do "Poema em linha recta" de Álvaro de Campos. Grande, enorme, inimitável Herberto Helder, que me fazes esquecer a mesquinhez
de tanta coisa.

1 comentário:

samartaime disse...

FIXE!...
( Ora aqui está uma critica literária brilhante!)

Eu gosto do Herberto com palavras a mais, palavras a prazo e palavras raras.
Por esta servidão vejo que aquilo a que chamam rigor, não é mais que o negativo do filme.
Chega um tempo que não há conversa possível, dá um silêncio do camandro.

Quanto ao mais, abaixo o salsicheiro do Porto!


E vão beijinhos, N