quarta-feira, 18 de abril de 2012

POESIA & RESISTÊNCIA






[Resposta ao inquérito sobre Poesia e Resistência realizado por Ana Luísa Amaral, Joana Matos Frias, Pedro Eiras e Rosa Maria Martelo para a LyraCompoetics]


INQUÉRITO


A poesia é uma forma de resistência? Sempre, por definição? Ou apenas em determinados contextos – sociais, políticos, culturais? Como pode resistir a poesia e a quê?

Respondem os poetas:




A associação destes dois vocábulos “poesia e resistência” corresponde, usualmente, numa certa vulgata algo superficial, ao conjunto de poéticas ou aos denominados textos de intervenção, que têm por objectivo a denúncia de um regime político criminoso e repressivo.
Parece, não sei se por definição ou dúvida, que a poesia desde tempos imemoriais foi sempre uma forma de resistência aos discursos dominantes, às tarefas esclavagistas, ao torpor repetitivo das horas, às finitudes de todo o género. Desde as velhas tradições orais, do rimance e da canção de gesta, que graças a oportunas recolhas vêm resistindo até à actualidade, podemos igualmente relembrar as canções de trabalho que ainda hoje perduram na cada vez mais parca ruralidade portuguesa.
A poesia é, decerto, um outro olhar para além do senso comum, e de todos os condicionalismos sociais, morais, estéticos ou outros. Como disse Artur Rimbaud, La liberté libre não pode ser assenhoreada por nenhum mandato. Quando me acerco de um novo poeta quero ser surpreendida, entrar numa mundividência que desconhecia, sair daquele livro de poemas com algo jamais lido. Por isso, o poema será tanto mais surpreendente, quanto mais altere a percepção do leitor. Com isto se preservará da usura do tempo e para além de respeitáveis e necessários comprometimentos circunstanciais a poesia resistirá.
É, no entanto, possível aliar, simbioticamente, várias “resistências” num só texto. Citarei, por exemplo, Paul Celan, no conhecido poema Todesfuge (Fuga da Morte), que conseguiu ser resistente a todos os títulos:
Leite negro da madrugada bebemo-lo ao entardecer
bebemo-lo ao meio-dia e pela manhã bebemo-lo de noite
bebemos e bebemos
cavamos um túmulo nos ares aí não ficamos apertados
Na casa vive um homem que brinca com serpentes escreve
escreve ao anoitecer para a Alemanha os teus cabelos de oiro
Margarete
(trad. de João Barrento e Y. K. Centeno)
Na nossa Literatura, é de sublinhar a lírica da resistência à ditadura desde final da década de trinta até 1974, tendo alguns autores sofrido até penas de prisão (Jaime Cortesão, Miguel Torga, Casais Monteiro, Borges Coelho e Veiga Leitão). Outros incluíram no seu discurso poético a denúncia da iniquidade da repressão, cantando O dia inicial inteiro e limpo da liberdade recuperada (Sophia de Mello Breyner).
Para terminar este breve depoimento, quero deter-me em dois exemplos maiores que não costumam ser conotados com o binómio “poesia e resistência”: um deles será Fernando Pessoa que, com a sua heteronímia conseguiu ultrapassar os condicionalismos de uma voz unívoca, de um só sujeito lírico, construindo um “drama-em-gente”, onde todas as inter-subjectividades são possíveis. O outro exemplo é do século XVI, mas, surpreendentemente, parece aplicável ao Portugal da actualidade:
Não mais, Musa, não mais, que a Lira tenho
Destemperada e a voz enrouquecida,
E não do canto, mas de ver que venho
Cantar a gente surda e endurecida.
O favor com que mais se acende o engenho
Não no dá a pátria, não, que está metida
No gosto da cobiça e na rudeza
Duma austera, apagada e vil tristeza.
(Os Lusíadas, Canto X, Est. 145)
Mas, como se verifica, já estamos no século XXI e resistimos à austera, apagada e vil tristeza quinhentista, lendo estes geniais decassílabos.


I.L.
Dezembro de 2011


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