sexta-feira, 7 de junho de 2013

Victor Oliveira Mateus


A ferida era aquela tarde antecipando o fim.
As minhas mãos trôpegas a procurar-te
abrigo num guarda-chuva grosseiro
e rombo, e numa vida que me abandonava
sem que tu o entendesses. A ferida
surgia, certeira e fera, no mais ínfimo
pormenor, pormenor esse que tu não vias,
pois de tudo se estava longe (ainda),
excetuando, contudo, um dorido
abandono a infiltrar-se insidiosamente
nos meus olhos. A ferida éramos nós pela rua:
tu a puxares o guarda-chuva para ti
e eu, sem que te apercebesses, gotejando
um fogo que o vendaval alimentava.

A ferida era eu, desajeitado, frente
ao parquímetro com as moedas sempre
a caírem-me e tu perguntaras-me
o que era uma retrosaria. A ferida
éramos nós a rir, a rir por haver palavras
iguais que, nos intentos iguais, não falavam
de coisas iguais... e isso era bom,
pensaria o meu Proust, que no complexo
buscava a harmonia para só depois tentar
o simples. A ferida era esse futuro caminho
com o oceano já a avançar, essa razia
do tempo numa cidade a findar-se
comigo a ler-nos por dentro - última
tentativa de suster o irremediável.


in Gente dois Reinos, Labirinto 2013, Fafe, pág.26.

3 comentários:

Maria Elvira disse...

Lindo, Victor, lindo...Comovente, triste, alegre, seco, molhado. Ferida aberta, ferida fechada!
Bjs.,
Elvira

Maria Elvira disse...

Victor, seus poemas estão cada vez mais lindos. Beijos!

samartaime disse...

Ainda bem que regressou aos vivos.
Sempre tem outro calor.
Desde que passei pelas andanças da substituição do blogue pelo site, perdi muita gente. Lá vou refazendo aos poucos o caminho.

E o face é mesmo detestável!