quinta-feira, 14 de junho de 2012
Miguel - Manso
1
Abres o alçapão, pões o braço lá dentro. O que retiras de lá não é o que retiras de lá, mas ocupa um lugar. É um lugar o que retiras do alçapão. Um lugar a menos
3
O livro é uma cegueira veloz no sentido da lentidão. Nada, tudo, outra vez nada. Depende da mão que abandona mas primeiro bane o que bane a estranheza. O livro não se define com desembaraço, é de tear complicado. O dedo que aponta o livro não é o livro. O que o autor e o leitor sim aprendem com o livro: a evidência da escuridão, o indistinto da nitidez
28
No jornal: mulher esteve nove anos morta em casa. Passou quase uma década entre o momento íntimo dessa morte e o maior ou menor espavento civil (e/ou religioso) que a autorizou. A morte, que acontece sempre aos outros, precisa, idealmente, da exibição do seu resíduo: o corpo consumado. Ou então de um vestígio, notícia, um boato que seja. Se ninguém acolheu a morte dessa mulher, então ela só morreu (tornou a existir) de facto, no dia em que a encontraram no chão do seu apartamento. Mais do que uma utopia, ou um hiato (uma hiatopia) o lugar e o tempo onde e em que ela desexistiu (apurados e admitidos postumamente) têm a dimensão do mito. E eis que o vocábulo apartamento atingiu ali a sua literalidade. Mas de nada, para nada, por nada e em tempo nenhum
32
Alinhas letra a letra o letreiro da burla. O textículo em que trabalhas não obedece mais à profusa lei do pôr. E apenas sobrepões por camadas um espanto já aborrecido e sem lugar, de onde retiraste o gesto de ter posto mas nunca o gesto de ter gesto. Nunca o vento de resumir ou o rasto de ampliar
52
Poesia em estado bravio há. É porém o poema, esse organismo mindinho que pertence por degeneração ao corrupto agregado literário, que terá de encontrar a voltagem exacta que permita canalizar a pequena parte - a possível - de todo o potentado. O problema dos poetas começa por ser uma dificuldade de artesanato, de técnica, de oficina. E os cantos mais belos estão ainda à espera de ser cantados (WW)
in Um Lugar a Menos, Os Carimbos de Gent, Lisboa 2012, págs. 11; 13; 44; 50 e 76.
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1 comentário:
Manso?
O Bernardo Soares ao pé deste é um sossego!
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