segunda-feira, 29 de outubro de 2012

A.M. Pires Cabral

CÃES QUE BRINCAM

I

Dois cães brincam na relva.

Disputam entre si, como se fosse
um apetecido despojo de batalha,
um trapo que um deles descobriu algures.

Um trapo que a seu tempo foi julgado inútil
e jogado fora - mas que, como se vê,
tem afinal enorme utilidade.


II

Os cães são ainda muito jovens
e pouco experientes. Fazem da posse
do trapo velho uma questão de honra,
e não sabem
que não é realmente com um trapo
mas sim com a vida-ela-mesma
que estão a brincar, quando se roubam
com ardor o trapo e correm estouvados
com ele nos dentes, embatendo nas coisas.

Ou será que acham que
vida e trapo são uma coisa só?


III


Há nos cães que brincam,
que arruaçam e arremetem
e rosnam e sacodem entre os dentes
um trapo que pelos vistos não é
um trapo simplesmente -

há neles um equívoco que convém desfazer.

Eles não brincam com um trapo.
Nem tão-pouco com a vida,
como acima se disse precipitadamente.
Visto tudo a frio, nem sequer
se pode dizer que brinquem.

A vida, sim, essa é que brinca neles
até se cansar deles e os pôr de lado.


in Cobra-D'água, Livros Cotovia, Lisboa 2011

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