quarta-feira, 23 de maio de 2012

Telhados de Vidro nº 16 - ABRIL - 2012

POETA COSENDO UM BOTÃO NAS CALÇAS

está encostado a um navio porque tem o navio
na cabeça
cose o botão    poeta   cose
e a linha vai e vem   entre os dentes
linha branca
horizonte em contraste com o bege do algodão
das calças   este poeta está mais de acordo com o mar
que pesa debaixo do navio
do que muitos poetas que andaram
correndo os oceanos   escrevendo imagens salpicadas
de algas   tesouros e peixes   é um poeta
um poste de luz   é um poste de luz
e cose sem dificuldade o botão nas calças


( p. 12)


FERNANDO PESSOA NO MARTINHO DA ARCADA

ele há coisa mais natural do que um poeta amar o ovo estrelado?
é o que ouço dizer
que Pessoa para além de tudo
passando sem pressa de passar na praça maior do Tejo
sentado no café com versos e odores de mar
gostava de ovo estrelado
dizia que era um sol frito
as coisas que um poeta diz

( p. 14)


LIMPA-VIDROS

entre nós e o que queremos dizer há um vidro
ou uma lente com as suas nódoas de humanidade   as dedadas
as marcas do frio   as saraivas   o pó
um verso mais ou menos limpo de imperfeições é
aquele que podemos ler depois de um trabalho com limpa-vidros

( p. 17)


Abel Neves, Averno, Lisboa, 2012.
Direcção:
Inês Dias e Manuel de Freitas.


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