terça-feira, 6 de setembro de 2011




AGUENTA-TE COM ESTA


Talvez se mostrem no café da aldeia
a meio da tarde
as raparigas da cidade,
o longo cabelo a vedar-lhes
o rosto ensonado,
a pele branca correndo
sob as alças da blusa
ou feita navalha debaixo da mesa.
Mas tu não terás palavras, rapaz,
mesmo de calças novas
e camisa lavada,
pois tuas costas semelham
sacos de batatas
e no extremo de teus braços
encaixam lâminas de enxada.
Ficarás encostado ao balcão
armado em muro prestes a ruir.

Sairás por onde entraste,
fumador de SG filtro
cujo maço,
qual amachucada flor de lapela,
guardas no bolso da camisa.

Por cigarros vieste, os olhos
deitas em roda desarmados,
e dali disparas, metendo
pelo trilho que à treva desce.

RUI  LAGE
Um arraial português, p.30, Ed. Babel/Ulisseia
2011, abril.

Esclarece-nos o autor que «Os titulos dos poemas deste livro [..] são homónimos de titulos de canções da música ligeira portuguesa - ou de fragmentos das letras dessas canções - quase todas obrigatórias nos arraiais de verão um pouco por todo o país. [...]»

Escolhi este poema porque me parece que põe fortemente em evidência o desencontro de uma certa cultura jovem urbana e rural.

Esta poesia consegue com rara perícia vocabular e expressiva fazer uma interface inabitual entre esses dois mundos

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