domingo, 3 de julho de 2011

Ana Paula Inácio



O poeta carreirista

está sempre a morrer nos poemas

de cancro do pulmão ou cirrose hepática

mas na verdade cuida da sua obra (e do respectivo autor)

data-a e arquiva-a minuciosamente

trava mesmo amizade com uma bibliotecária

que o auxilia em braile

não vá acontecer-lhe

como o Camilo

frequenta o ginásio,

masca Trident Senses

e milita nos partidos certos.

O poeta carreirista já nasceu poeta

foi bem orientado desde pequeno

inscrevendo-se na Associação Portuguesa de Autores

mesmo sem obra publicada

não fosse alguém roubar-lhe a ideia

dorme com um olho aberto outro fechado

- nos poemas lê-se insónia –

e namora rapariga letrada

embora aos 35 sofra uma crise de orientação sexual

e aos 40 tente uma escrita erótica mais abrangente

a manquejar Sena e a farejar alguns espanhóis.

O poeta carreirista não bebe cerveja

mas vinho tinto do Alentejo

abre às vezes excepções e acompanha-a com

tremoços ou caracóis.

O poeta carreirista vai a tudo

rádio, TV e revistas,

coquetterie fina

e instala-se, de preferência, na capital.



Acrobacias

sentados em Trafalgar Square

no intervalo de amigos

com o tempo entre mãos

treinávamos o inglês

num inquérito de revista

com Francis Bacon na capa

que perguntava:

qual dos membros

- superiores ou inferiores –

preferíamos perder

(esta ablação em língua estrangeira

torna-se indolor, quase anestesiada)

respondeste: os braços

as pernas conservá-las-ia

como a liberdade de poder andar

respondi: as pernas

não queria ver-me

impedida de abraçar.

Assim juntando as nossas

perdas

eu abraço-me a ti

e peço-te anda, mostra-me o mundo

e quando nos cansarmos

abraçar-me-ás, então, com as pernas

e eu

andarei com os braços.

 
ANA PAULA INÁCIO
 
in «2010 - 2011»
 
Edições AVERNO, 2011.

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