O poeta carreirista
está sempre a morrer nos poemas
de cancro do pulmão ou cirrose hepática
mas na verdade cuida da sua obra (e do respectivo autor)
data-a e arquiva-a minuciosamente
trava mesmo amizade com uma bibliotecária
que o auxilia em braile
não vá acontecer-lhe
como o Camilo
frequenta o ginásio,
masca Trident Senses
e milita nos partidos certos.
O poeta carreirista já nasceu poeta
foi bem orientado desde pequeno
inscrevendo-se na Associação Portuguesa de Autores
mesmo sem obra publicada
não fosse alguém roubar-lhe a ideia
dorme com um olho aberto outro fechado
- nos poemas lê-se insónia –
e namora rapariga letrada
embora aos 35 sofra uma crise de orientação sexual
e aos 40 tente uma escrita erótica mais abrangente
a manquejar Sena e a farejar alguns espanhóis.
O poeta carreirista não bebe cerveja
mas vinho tinto do Alentejo
abre às vezes excepções e acompanha-a com
tremoços ou caracóis.
O poeta carreirista vai a tudo
rádio, TV e revistas,
coquetterie fina
e instala-se, de preferência, na capital.
Acrobacias
sentados em Trafalgar Square
no intervalo de amigos
com o tempo entre mãos
treinávamos o inglês
num inquérito de revista
com Francis Bacon na capa
que perguntava:
qual dos membros
- superiores ou inferiores –
preferíamos perder
(esta ablação em língua estrangeira
torna-se indolor, quase anestesiada)
respondeste: os braços
as pernas conservá-las-ia
como a liberdade de poder andar
respondi: as pernas
não queria ver-me
impedida de abraçar.
Assim juntando as nossas
perdas
eu abraço-me a ti
e peço-te anda, mostra-me o mundo
e quando nos cansarmos
abraçar-me-ás, então, com as pernas
e eu
andarei com os braços.
ANA PAULA INÁCIO
in «2010 - 2011»
Edições AVERNO, 2011.
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