quarta-feira, 15 de outubro de 2008

António Ramos Rosa

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O Funcionário Cansado

A noite trocou-me os sonhos e as mãos
dispersou-me os amigos
tenho o coração confundido e a rua é estreita
estreita em cada passo
as casas engolem-nos
sumimo-nos
estou num quarto só num quarto só
com os sonhos trocados
com toda a vida às avessas a arder num quarto só
Sou um funcionário apagado
um funcionário triste
a minha alma não acompanha a minha mão
Débito e Crédito Débito e Crédito
a minha alma não dança com os números
tento escondê-la envergonhado
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente
e debitou-me na minha conta de empregado
Sou um funcionário cansado dum dia exemplar
Por que não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?
Por que me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço
Soletro velhas palavras generosas
Flor rapariga amigo menino
irmão beijo namorada
mãe estrela música

São as palavras cruzadas do meu sonho
palavras soterradas na prisão da minha vida
isto todas as noites do mundo uma noite só comprida
num quarto só

in Viagem através de uma Nebulosa (1960)

Nota: O poeta, dos melhores da nossa língua, nascido em Faro em 1924, passa mais um aniversário, no próximo dia 17 de Outubro.

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Os Livros






-----------------------------------------________________para a Manuela





Os livros duram séculos e
falam da melodia da chuva,
dos rios e dos mares, das fontes,
dos húmidos beijos dos
amantes, mas também

morrem despedaçados num
qualquer temporal que parte
as vidraças e lhes tolhe as páginas
numa brutal invasão líquida.

E falam do fogo
das paixões, de estrelas
a arder no infinito,
mas o convívio das chamas
é-lhes vedado, apesar
da torpe ignorância,
a isso os ter condenado
tantas vezes.

Quantos naufrágios e incêndios
os destruiram, para depois
ressurgirem múltiplos,
audazes, amigos tão antigos e
tão novos.



I.L.
(Out. 2008)


segunda-feira, 6 de outubro de 2008

Carpe Diem

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Nunca entrou de bom grado
na manhã dos que adormecem
cedo na véspera, nem no tempo da escola
onde decorava poemas de sadios
lavradores tementes aos donos
do céu e da terra. Nunca colheu
o lírico logro da alvorada, esse proveito
da luz, um início cruel que culpa
tudo o que vai acabar ao meio-dia.
Sempre a manhã separou amantes,
confirmou cegueiras, prendeu fugitivos,
escarneceu loucos, cismáticos, tardios...

I. L.

A Enganosa Respiração da Manhã, 2003, Asa Editores